A legislação brasileira define e defende a liberdade e dignidade sexual como bem jurídico tutelado. Em que pese a moralidade de um ato possa torná-lo invasivo para determinada pessoa e não para outra, é juridicamente relevante para a legislação penal apenas a lesão a liberdade sexual praticada sem o consentimento da vítima, ainda que o ato seja exclusivamente libidinoso. Não obstante ao fato de que àqueles que a lei define como vulnerável, a exemplo da previsão do art. 217-A (estupro de vulnerável), recebem especial proteção.
O Código Penal Brasileiro, no Título VI, Capítulo I, art. 213, prevê o crime de estupro, e apresenta a atual redação:
Art. 213. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso:
Pena – reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos.
§ 1o Se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave ou se a vítima é menor de 18 (dezoito) ou maior de 14 (catorze) anos:
Pena – reclusão, de 8 (oito) a 12 (doze) anos.
§ 2o Se da conduta resulta morte:
Pena – reclusão, de 12 (doze) a 30 (trinta) anos
A lei 12.015/09, além de alterar o caput do referido artigo incluiu os parágrafos 1o e 2o, revogou por inteiro o artigo seguinte[1] que previa o crime de atentado violento ao pudor e por fim, incluiu o ato libidinoso diverso da conjunção carnal sob a rubrica do estupro, junto com a própria conjunção carnal.
A referida alteração gerou inúmeras críticas por parte do s operadores do direito que entendem que o estupro, tido até então na linguagem popular como a conjunção carnal, seria o máximo previsto para um ato ofensivo a liberdade sexual, porém, limitamo-nos neste artigo apenas a análise do tipo penal abordado, sob o enfoque da legislação atual, apontando determinados pontos polêmicos, onde primeiramente cumpre destacar o que leciona Celso Delmanto quanto a ausência de diferenciação entre as diversas modalidades de ato libidinoso:
Mantemos as críticas que fazíamos nas edições anteriores à revogação do art. 214 (que incriminava, de forma autônoma, o atentado violento ao pudor), por não ter o legislador inserido, quanto ao conceito de ato libidinoso, uma graduação e consequente apenação diferenciada dos diversos tipos de atos, punindo com as mesmas e severas penas , por exemplo, um gravíssimo sexo anal e um toque em regiões íntimas. Restaria assim, neste último caso ao juiz: a. desclassificar o delito para contravenção do art. 61 LCP (importunação ofensiva ao pudor), se praticada em local público ao acessível ao público; b. desclassificar para contravenção do art. 65 LCP (perturbação de tranquilidade), se não cometida em local público ou a este acessível; ou c. considerar o fato penalmente atípico.
Na nova lei, em que pese a intenção do legislador fosse claramente a de tornar a norma mais rígida, o agente que submeter a vítima a conjunção carnal e ato libidinoso diverso desta, pela norma atual será beneficiado, respondendo apenas pelo tipo penal previsto no art. 213, enquanto pela regra anterior, responderia em concurso material pelos arts. 213 (estupro) e 214 (atentado violento ao pudor). A esse respeito, o STJ já manifestou-se:
DIREITO PENAL. APLICAÇÃO RETROATIVA DA LEI 12.015/2009. O condenado por estupro e atentado violento ao pudor, praticados no mesmo contexto fático e contra a mesma vítima, tem direito à aplicação retroativa da Lei 12.015/2009, de modo a ser reconhecida a ocorrência de crime único, devendo a prática de ato libidinoso diverso da conjunção carnal ser valorada na aplicação da pena-base referente ao crime de estupro. De início, cabe registrar que, diante do princípio da continuidade normativa, não há falar em abolitio criminis quanto ao crime de atentado violento ao pudor cometido antes da alteração legislativa conferida pela Lei 12.015/2009. A referida norma não descriminalizou a conduta prevista na antiga redação do art. 214 do CP (que tipificava a conduta de atentado violento ao pudor), mas apenas a deslocou para o art. 213 do CP, formando um tipo penal misto, com condutas alternativas (estupro e atentado violento ao pudor). Todavia, nos termos da jurisprudência do STJ, o reconhecimento de crime único não implica desconsideração absoluta da conduta referente à prática de ato libidinoso diverso da conjunção carnal, devendo tal conduta ser valorada na dosimetria da pena aplicada ao crime de estupro, aumentando a pena-base. Precedentes citados: HC 243.678-SP, Sexta Turma, DJe 13/12/2013; e REsp 1.198.786-DF, Quinta Turma, DJe 10/04/2014. HC 212.305-DF, Rel. Min. Marilza Maynard (Desembargadora Convocada do TJ/SE), julgado em 24/4/2014.
O tipo penal em estudo encontra-se no rol dos crimes hediondos, seja na forma simples ou qualificada, admite coautoria e como dito, tutela a liberdade sexual do ser humano ou seja, homem e mulher. Tem-se como núcleo do elemento objetivo do tipo o verbo “constranger”, o que deve ocorrer mediante violência ou grave ameaça forte o suficiente a inibir a vontade da vítima, causando-lhe dano material ou moral. O dissenso deve por sua vez ser claro e específico, em que pese a jurisprudência não descarte a possibilidade da ocorrência de comportamento passivo da vítima resultante do pânico causado pela violência, grave ameaça ou pela própria situação. Neste caso, a ánalise se dará caso a caso.
O elemento subjetivo reside no dolo específico (vontade específica de agir), enquanto a consumação pode ocorrer de duas formas: seja pela conjunção carnal, onde o crime consuma-se com a penetração vagínica ainda que parcial, seja pela a mera prática do ato libidinoso. Cumpre destacar que o ato libidinoso pode ocorrer ainda que ausente o contato físico entre o agente a e vítima, quando por exemplo, aquele mediante ameaça obriga que a vítima toque seu corpo de maneira erótica.
Em uma análise doutrinária e teórica, verifica-se que o estupro se trata de um crime comum, vez que pode ser praticado por qualquer pessoa; comissivo ou em casos excepcionais comissivo por omissão, quando o agente na posição de garante tinha o dever de impedir o resultado; material, pois exige que a execução ocorra pelas vias previstas no tipo, violência ou grave ameaça; de dano, vez que a consumação exige a lesão ao bem jurídico tutelado; instantâneo, pois a consumação não se prolonga e doloso, não admitindo a forma culposa.
Como dito, a alteração legislativa incorporou e um único tipo legal a conjunção carnal e todo e qualquer ato libidinoso diverso dela, praticado mediante violência contra a vontade da vítima, mantendo-se omisso o legislador quanto a classificação e gradação do ato libidinoso. As críticas geradas, residem em sua maioria na impossibilidade de se fazer a correta gradação da pena de acordo com a conduta do agente ativo ou seja, o tipo penal pune de igual forma aquele que a título de exemplo, obriga a vítima a tocar-se de forma erótica e aquele que efetivamente pratica conjunção carnal forçada contra a vítima.
Apesar de não ser objeto do presente artigo, em que pese as condutas acima atinjam o mesmo bem jurídico, liberdade sexual, a vitimologia demonstra que o efeito devastador para a vítima é muito maior na segunda hipótese, motivo pelo qual sob o prisma de grande parte da doutrina, o tipo penal em estudo, carece da possibilidade de trabalhar melhor a gradação da pena.
Como opção, em casos específicos, a doutrina e jurisprudência tem optado em desclassificar determinadas condutas para a contravenção penal de importunação ofensiva ao pudor, previstas nos arts. 61 ou 65 da LCP[2] (Lei de Contravenções Penais).
Outro assunto que gera acalorados debates doutrinários, é quanto a possibilidade ou não da tentativa.
Um exemplo dado por aqueles que sustentam a possibilidade da forma tentada é, quando o agente mediante grave ameaça demonstra a intenção da prática do estupro, mas por circunstâncias alheias a sua vontade, é interrompido antes de praticar qualquer ato libidinoso ou conjunção carnal. Outra parte da corrente que defende a possibilidade da forma tentada, deposita no dolo do agente seus fundamento, defendendo que se o dolo do agente era a conjunção carnal, e este é interrompido antes de praticá-la, o estupro é tentado ainda que tenha ocorrido atos libidinosos.
De outro lado, outra corrente sustenta que neste mesmo caso, o agente praticou o núcleo do tipo expressamente previsto, ato libidinoso, e portanto responderá pelo estupro consumado, não permitindo assim esse tipo penal a forma tentada.
Compartilhamos o entendimento de que, ainda que por uma imprecisão legislativa que não permita a correta gradação da pena, só se admite a tentativa[3] se comprovadamente o agente imbuído de dolo de praticar o estupro, inicia a violência ou grave ameaça, sendo interrompido antes de praticar qualquer ato libidinoso, eis que o mero ato libidinoso configura a consumação do delito em estudo, o que não se aplica caso ocorra algumas das hipóteses previstas nas qualificadoras dos parágrafos 1o e 2o.
Mais um debate que a redação deste tipo penal apresenta é quanto a desistência voluntária prevista no art. 15 do CP, pois enfrenta a mesma dificuldade da tentativa, partindo da premissa que, identificada a prática de qualquer ato libidinoso, o crime resta consumado. Assim, a hipótese de incidência da desistência voluntaria recai também no fato do agente ativo após o emprego de violência interrompe voluntariamente a prática do estupro ou seja, desiste sem a prática de ato libidinoso ou conjunção carnal. O problema que destacamos reside no fato de que o autor, querendo a cópula vagínica, desiste de seu intento após apenas exercer contato físico com a vítima, neste caso, responderia pelo ato libidinoso diverso da conjunção carnal, neste caso o próprio estupro, assim com toda certeza existe um verdadeiro desestímulo a desistência do agente após a ocorrência de qualquer contato com a vítima, ruindo assim o instituto previsto no art. 15 do CP.
As qualificadoras encontram-se previstas nos parágrafos 1o: lesão corporal de natureza grave, que retrata crime preterdoloso, onde existe dolo no estupro e culpa no resultado, importante ressaltar que a lesão leve é absorvida pelo estupro, e no 2o, quando praticado contra vítima menor de 18 e maior de 14 anos, onde o agente deve saber a idade da vítima, e no caso de desconhecimento, sendo o erro escusável , o agente responde pelo caput.
Por fim, cumpre analisarmos a natureza da ação penal, que na legislação atual pelo que dispõe o art. 225 do CP é Pública condicionada à representação do ofendido, de outro lado, o estupro contra menor de 18 (dezoito) anos ou vulnerável, e nos casos em que resulte a morte da vítima, a natureza da ação será pública incondicionada.
Giuliano Henrique Wendler de Mello – OAB/PR 59426 OAB/SC 34.474-a
_________________________________________
Fonte Bibliográfica
DELMANTO, Celso, Roberto, Roberto Júnior e Fábio. Código Penal Comentado. São Paulo: Saraiva, 8a ed., 2011
JESUS, Damásio de. Direito Penal – Parte Geral – Volume 3. São Paulo: Saraiva 20a ed., 2011
[1] Redação anterior à Lei 12.015/09:
Art. 213 – Constranger mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça:
Pena – reclusão, de três a oito anos.
Parágrafo único: Se a ofendida é menor de catorze anos:
Pena – reclusão, de seis a dez anos.
Atentado violento ao pudor
Art. 214 – Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a praticar ou permitir que com ele se pratique ato libidinoso diverso da conjunção carnal:
Parágrafo único. Se o ofendido é menor de catorze anos:
Pena – reclusão de dois a sete anos.
[2] Art. 61. Importunar alguém, em lugar público ou acessível ao público, de modo ofensivo ao pudor:
Pena – multa, de duzentos mil réis a dois contos de réis
Art. 65. Molestar alguém ou perturbar-lhe a tranquilidade, por acinte ou por motivo reprovável:
Pena – prisão simples, de quinze dias a dois meses, ou multa, de duzentos mil réis a dois contos de réis.
[3] Art. 14 – Diz-se o crime: (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
Tentativa (Incluído pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
II – tentado, quando, iniciada a execução, não se consuma por circunstâncias alheias à vontade do agente. (Incluído pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
Pena de tentativa (Incluído pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
Parágrafo único – Salvo disposição em contrário, pune-se a tentativa com a pena correspondente ao crime consumado, diminuída de um a dois terços.